quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

O que significa “nascer da água”? – uma análise de João 3:5

"5. Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus."
(João 3:5, ACF)

 

Hoje perguntaram “o que significa “ÁGUA” em João 3:5?” e eu fiquei de escrever um texto pra responder essa pergunta. A verdade é que pra entendermos o que significa água, devemos fazer uma análise em formato de funil: MACRO>micro e então, especificamente à palavra “água”.

Primeiro devemos entender o contexto imediato de João 3:5. Nesse texto, Jesus estava conversando com Nicodemos, o v. 1 o descreve como “príncipe dos judeus”, (ἄρχων- archón que significa: 1. governador, comandante, chefe, líder - #G758 Strong). Essa informação é importante, pois implica que Nicodemos fosse um profundo conhecedor do Antigo Testamento (Tanahk). Quando Nicodemos procurou Jesus, ele provavelmente já sabia de quem era Jesus e o verso 2. Nos explica como: “Rabi, bem sabemos que és Mestre, vindo de Deus;” Rabi (gr. rhabbi) e Mestre (gr. didaskalos) não eram títulos que seriam dados pra qualquer um, Jesus não era um Sacerdote, ele não era um Rabino sacerdote e isso era conhecido, mas seu poder em face dos milagres eram tantos, que pra Nicodemos, era nítido que Jesus era o Rabi, o Mestre, alguém que merecia honra, afinal “ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com ele”. Esses dois pontos nos levam às seguintes conclusões:

1- Nicodemos era conhecedor do Antigo Testamento

2- Nicodemos reconheceu maestria e autoridade profética de Jesus. “Profeta” é um ofício cristológico/messiânico. Esse é o contexto de uma conversa escatológica, afinal, é diante do Messias (pessoa da consumação profética) que um mestre das Escrituras (Tanahk) estava diante.

Nicodemos como um bom fariseu não esperava que os sinais do Reino, que Jesus está demonstrando, falasse sobre um Reino vindouro. Pra ele, esperava-se uma renovação política e econômica, mas Jesus muito além do que isso, é Rei dos Reis (e não de um governo de um país, mas sim de Geração Eleita e Nação Santa). Jesus estava instaurando um Reino que não é desse mundo, a palavra “reino” do v.3 (βασιλεία, basileia) é uma palavra com mais de um significado, um deles é “do poder real de Jesus como o Messias triunfante” ou “do poder real e da dignidade conferida aos cristãos no reino do Messias”. Definitivamente, Jesus não estava falando de um Reino desse mundo, político ou econômico, Ele estava falando do seu bendito Reino, da sua salvação, daquilo que Ele prepara para os que O amam, pra aqueles que nasceram de novo. O Reino de justiça para injustos necessita de justiça vinda de quem é justo totalmente (2 Coríntios 5:21).

Entendido o contexto imediato (e levando em consideração que no contexto remoto, Jesus havia acabado de realizar seu primeiro milagre: transformação da água em vinho – João 2), entendemos que a conversa que Jesus estava tendo com Nicodemos no verso 5 faz alusão ao cumprimento de uma profecia do Antigo Testamento. Como disse D.A Carson[1] “...Jesus censura Nicodemos por não entender essas coisas em sua função como ‘mestre de Israel’ (v.10), um “catedrático” das Escrituras, e isso por sua vez sugere que nós devemos nos voltar para o que os cristãos chamam de Antigo Testamento para começar a discernir o que Jesus tinha em mente”, esse paralelo terminológico “água-espírito” é feito pela primeira vez pelo profeta Ezequiel, portanto, conclui-se que Jesus esteja fazendo uma alusão à profecia de Ezequiel 36:25-27:

“25. Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. 26. E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. 27. E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis.” Ezequiel 36:25-27, ACF

Segundo Everett F. Harrison [2], essa passagem de Ezequiel diz sobre “...o perdão, a regeneração e o dom do Espírito de Deus.”, a tese do teólogo é que o profeta esteja traçando uma recordação acerca do ritual mosaico de Êxodo 30:17-21; Levítico 14:5-7,9; Números 19:9,17-19 sobre o perdão. É fato que essa imagem prefigurava o que Jesus Cristo fez por nós, a promessa de perdão/expiação é profecia messiânica, e textos do Novo Testamento nos fazem crer dessa forma: “16. Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, 17. Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo.” Colossenses 2:16,17 ACF; “Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção.” Hebreus 9:12 ACF; “Mas, se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado.” 1 João 1:7 ACF.

A ideia de “aspersão”, além de presente em Ezequiel, é também ensinada no Novo Testamento. No AT, a aspersão era de “água”, que segundo Craig Keener[3] “... Ezequiel usou a água como símbolo para a purificação do Espírito [...] de modo que, aqui, Jesus poderia estar comunicando o sentido de “convertido pelo Espírito” – um batismo espiritual de prosélitos”.  Embora eu discorde que a ideia de uma purificação da água seja a conversão em si (veremos mais pra frente que: justificação e regeneração são conceitos distintos), o fato de “água” simbolizar purificação, novamente nos leva a textos do Novo Testamento que colocam a causa da purificação no sangue de Cristo, confira um desses textos:

“Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo?” Hebreus 9:14, ACF

O Apóstolo Paulo parece estar indicando um sinônimo da purificação dos pecados pelo sangue de Cristo (João 1:29, gr. “airo”- carregar, tirar) no conceito de justificação em Romanos, ao dizer “Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira.” Romanos 5:9, ACF. Esse ensino coloca a causa da remissão dos pecados no sangue de Cristo, afinal “sem derramamento de sangue não há remissão.” Hb 9:22b. A sincronia entre os conceitos de “purificação” e “justificação” tem causa única: derramamento de sangue, do qual o de Cristo consumou.

Um outro texto do Novo Testamento que trata sobre a “aspersão” no sangue de Cristo é 1Pedro 1:2, confira:

“2. Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas.” 1 Pedro 1:2, ACF

Nessa passagem, o Apóstolo diz sobre a eleição de Deus segundo a presciência (eleição essa, que tem como objeto Jesus, “E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade,” Efésios 1:5). A preposição εἰς (eis), significa “1. “em” ou “para” (indicando o ponto alcançado ou inserido), de lugar, tempo.” (G1519 Strong’s), ou seja, a eleição em Cristo tem como objetivo “a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo”. Sobre a “aspersão no sangue de Jesus Cristo”, Ênio R. Mueller[4] comenta “Muito provavelmente o pano de fundo dessa figura encontra-se no ritual da aliança descrito em Ex 24:1-11 [...], aparecendo também em Hb 9:18-21. [...] A aspersão no sangue de Jesus Cristo sobre a pessoa indica, assim, que o valor salvífico no sacrifício na cruz é transferido e aplicado à mesma. E nisso está envolvido o perdão dos pecados e a consequente purificação do ser.”. João Calvino[5], reformador do século XVII, escreve sobre 1Pe 1:2, e diz “E ali parece haver uma alusão implícita ao antigo rito da aspersão usada sob a lei. Porque, como então não era suficiente que uma vítima fosse morta e o sangue fosse derramado, a não ser que a pessoa fosse aspergida, assim agora, o sangue de Cristo, que foi derramado, de nada nos valerá a não ser que as nossas consciências sejam por ele purificadas.”.

 

Conclusão: Jesus ao dizer que devemos nascer da “água”, ele estava dizendo sobre passarmos pela sua cruz, crendo que aquilo é por nós, para nos salvar, resgatar, restaurar, justificar e nos dar o direito legal de sermos apresentados diante de Deus como puros, salvos, amigos, e por Ele, ADOTADOS COMO FILHOS DE DEUS. Jesus não estava dizendo sobre a ordenança do batismo, e sim sobre o seu sangue, que nos purifica completamente, e de uma vez por todas.

 

“6. Eis que amas a verdade no íntimo, e no oculto me fazes conhecer a sabedoria. 7. Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e ficarei mais branco do que a neve.”

Salmos 51:6,7 ACF

 

Miguel Augusto Gonçalves, servo de Cristo e por Ele justificado.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] CARSON, Donald Arthur. The Gospel acording to John. Publicado em português como “O comentário de João”; tradução Daniel de Oliveira & Vivian do Amaral Nunes. Shedd Publicações, São Paulo – 2007. P. 194 e 195.

[2] HARRISON, Everett F. Comentário Bíblico Moody: volume 1. Editora Batista Regular, São Paulo – 2017.

[3] KEENER, Craig S. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Novo Testamento. Edições Vida Nova, São Paulo – 2017.

[4] MUELLER, Ênio R. 1 Pedro: introdução e comentário. Edições Vida Nova e Editora Mundo Cristão, São Paulo – 1991. P. 72 e 73.

[5] CALVIN, Jean. Epístolas gerais. Editora Fiel, São José dos Campos, SP – 2017. P. 140.

ERICKSON, Millard. Christian Theology. Publicado em português como “Teologia Sistemática”; tradução Robinson Malkomes, Valdemar Kroker, Tiago Abdalla Teixeira Neto. Edições Vida Nova, São Paulo – 2015.

DILLARD, Raymond B., LONGMAN, Tremper III. An introduction on the Old Testament. Publicado em português como “Introdução ao Antigo Testamento”; tradução Sueli da Silva Saraiva. Edições Vida Nova, São Paulo – 2006.

GRUDEM, Wayne A., Teologia Sistemática: atual e exaustiva, -- São Paulo, Editora Vida Nova, 1999.

 

 

**Todos os Textos Bíblicos foram extraídos da Bíblia Sagrada na tradução Almeida Corrigida e Fiel, da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.

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