Ontem (14/04/2022) compartilhei em meu Facebook, sem a menor pretensa de causar confusão, um post de um pastor querido que criticava “santo” Agostinho de Hipona por apoiar a perseguição de cristãos donatistas, um grupo anabatista liderado pelo pastor Donato de Casa Nigra (bispo de Numídia e Cartago) no século IV. Em concordância, o post sugeria que Agostinho se assemelhava a Paulo antes da sua conversão. O post foi excluído após surgirem pessoas, ditas cristãs, defendendo Agostinho e a perseguição aos cristãos “hereges” (donatistas foram anatemizados pela igreja romana, como quaisquer anabatistas o foram, mas o dito comentador os colocou em pé de igualdade com arianos, o que é um absurdo). Eu estou escrevendo esse texto pra dizer que como cristão batista, não estou do lado dos que aos olhos humanos foram vencedores na história, e que portanto contam a história com o intuito de denegrir a imagem que cristãos anabatistas tiveram, e o mesmo tentam fazer com cristãos batistas hoje. Um dos motivos os quais creio na herança espiritual que temos com anabatistas, é analisando as crenças e o testemunho que essas comunidades locais tiveram de Cristo e seu Evangelho. Nós batistas costumamos afirmar que o que faz uma igreja local ser batista são seus distintivos. Que motivo teria para não considerar os anabatistas evangélicos como pais espirituais? Separação entre a Igreja e o Estado, batismo consciente e por imersão, memorialismo, suficiência das Escrituras, liberdade religiosa e de consciência e autonomia da igreja local são fortes crenças em comum dos batistas e dos anabatistas evangélicos. Mas além disso, antes de serem os “vencedores nas guerras de espadas”, essas comunidades foram fortemente perseguidas pela igreja do Estado, que ora romana ora protestante, oprimia com apoio do Estado aqueles que discordavam de crenças e práticas como: batismo infantil, regeneração batismal, igreja estatal, sacramentalismo dentre outros.
A igreja estatal perseguia, matava, torturava, queimava ou
escarnecia (com o tal “terceiro batismo”) os crentes em Cristo que não curvaram
suas cabeças a Nabucodonosor de seus tempos (o deus-papal ou o deus-Estado).
Entretanto, algo que me emociona e quebranta meu coração é saber que: pelo
menos dois pastores anabatistas que conheço (Pr. Mennon Simons e Pr. Michael
Sattler) ensinaram o verdadeiro amor de Cristo às suas igrejas: “Ouvistes que
foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não
resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também
a outra;” Mateus 5:38,39
Michael Sattler foi um pastor anabatista suíço que pastoreou
após a reforma protestante, provavelmente conheceu a espada [que pretendia
matar aqueles que a Vida lhes conferiu eterno estado de imortalidade] de
reformadores e de romanistas. Ele em 1527 escreve um documento chamado “Confissão
de Fé de Schleitheim” escreve também “Carta à Igreja em Horb”. Sua finalidade
com esses dois documentos foi instruir a igreja local quanto ao testemunho e a
fé que demonstrariam entre eles e publicamente. Na Confissão ele escreve [1]:
VI. Nós estamos de
acordo como segue sobre a espada.
[...]
Na perfeição de Cristo, no entanto, somente o banimento é usado para a advertência e a
exclusão daquele que pecou, sem mortificar a
carne — simplesmente a advertência e a ordem de não pecar
mais, [...]O magistrado do governo age segundo a carne, mas o cristão segundo o
Espírito; suas casas e moradias permanecem neste mundo, mas as dos cristãos
estão no céu; sua cidadania está no mundo, mas a cidadania dos cristãos está no
céu; as armas de seus conflitos e guerra são carnais e contra a carne somente,
mas as armas dos cristãos são espirituais, contra as fortificações do diabo. Os
mundanos estão armados com aço e ferro, mas os cristãos estão armados com a
armadura de Deus, com verdade, justiça, paz, fé, salvação e a Palavra de Deus.
Resumindo, como a mente de Deus para conosco, assim será a mente dos membros do
corpo de Cristo através dele em todas as coisas, para que
não haja divisões no corpo que o possam destruir. Pois todo reino dividido
contra si será destruído. Agora sendo que Cristo
é tudo que foi escrito a seu respeito, seus membros precisam ser a mesma coisa,
para que seu corpo possa permanecer inteiro e unido para assim progredir e ser
edificado.”
O pastor Sattler foi martirizado pela igreja estatal, e
entre as suas acusações de julgamento estava [2]:
“Nono, ele tem dito que se os turcos invadissem o nosso
país, não se deve resisti-los, e se fosse certo ir à guerra, ele preferiria
sair no campo [de batalha] contra os cristãos
a lutar contra os turcos, e realmente é algo muito sério incentivar os maiores inimigos
da nossa fé contra nós.”
Sim, ele escreveu e ensinou isso para
os cristãos anabatistas que estavam sendo perseguidos, mortos, queimados, afogados
e torturados pelo magistrado (igreja estatal). Com outras palavras: não
guerreiem na guerra deles, nossas armas são outras e a nossa guerra também.
O pastor anabatista Mennon Simons
ensinou algo parecido para as igrejas locais que pastoreou na Holanda, no
noroeste da Alemanha (Reno) e na região de Holstein (Hamburgo). Em seus muitos
escritos, ele diz coisas como:
“Quantos piedosos filhos de Deus,
pelo testemunho de Deus e por razões de consciência, tem sido despojados de seus
lares e posses e confiscadas suas propriedades para encher os insaciáveis cofres
do Imperador; quantos tem sido traídos, lançados fora de cidades e países,
atados a estaca e torturados, enviando os pobres órfãos desnudos pelas ruas.
Alguns deles tem sido pendurados, outros torturados com crueldade desumana e
depois enforcados. Alguns assados e queimados vivos. Alguns tem sido mortos
pela espada e entregues aos abutres para serem devorados; outros foram lançados
aos peixes; os lares de alguns destruídos, outros atirados em lamaçais e a
outros se lhes cortaram os pés; tenho visto a um destes últimos e tenho
conversado com ele. Outros vagam daqui para lá na miséria, sem lar, em aflição,
por montanhas e desertos, em grutas e covas da terra como disse S.Paulo. Devem
fugir de uma cidade para outra, de um país para outro, com sua esposa e filhos.
São odiados, ultrajados, caluniados, e denegridos por todos os homens;
denunciados pelos teólogos e magistrados; tem sido privados de seu alimento,
atirados fora no cruél inverno e apontados com o dedo do escárnio. Qualquer um
que colaborava na perseguição dos pobres e oprimidos cristãos, pensava que fazia
um serviço à Deus, como disse Jesus. (João 16:2). (I:196a). Se um ladrão é levado
ao patíbulo, um criminoso esquartejado no torno, ou qualquer outro malfeitor castigado
com uma pena de morte inusitada, todo o mundo pergunta o que ele fez. A sentença
não é dita enquanto os juízes não entenderem plenamente a causa e conhecerem a verdade
no que se refere ao delito. Mas toda vez que um inocente e contrito cristão ao
qual o Senhor na sua graça resgatou do caminho da perversidade e do pecado, e guiado
pelos caminhos de paz, é acusado pelos sacerdotes e pregadores, e conduzidos
diante dos tribunais, não o consideram digno de investigar detidamente que
razões e Escrituras o impelem para não mais escutar a sacerdotes e pregadores
... Não desejam saber por que corrigiu a sua vida e recebeu o batismo de
Cristo, ou qual pode ser o motivo pelo qual está disposto a sofrer e morrer
pela sua fé. A única pergunta que lhe é feita é se foi batizado. Se a resposta
for afirmativa, a sentença já está dada e tem que morrer.” [3]
“Ainda que infelizmente aqui devemos
ser perseguidos, oprimidos, golpeados, saqueados, queimados, afogados, pelo
Infernal Faraó e seus cruéis e desapiedados servos, no entanto, logo chegará o
dia da nossa libertação, em que nos serão enxugadas todas as lágrimas e seremos
adornados com vestimentas brancas da justiça, junto ao Cordeiro, e com Abraão, Isaque
e Jacó nos sentaremos no reino de Deus e possuiremos a deliciosa e prazerosa
terra do gozo eterno e imperecível. Louvai ao Senhor e levantai a cabeça, vós
os que sofreis por amor a Jesus; está próximo o dia em que ouvireis: “Vinde,
benditos” e vos regozijareis com Ele para sempre.” [4]
Com essas citações, pretendo mostrar que o verdadeiro testemunho
cristão, segundo o que Cristo deixou (“2 - Todavia, como cristãos, devemos
estender a mão de ajuda aos órfãos, às viúvas, aos anciãos, aos enfermos e a
outros necessitados, bem como a todos aqueles que forem vítimas de quaisquer
injustiças e opressões; 3 - Isso faremos no espírito de amor, jamais apelando
para quaisquer meios de violência ou discordantes das normas de vida expostas
no Novo Testamento;” justificados por: 3. Ex 22.21,22; Sl 82.3,4; Ec
11.1 // 4. Is 1.16-20; Mq 6.8; Mt 5.9. [5]).
O verdadeiro testemunho cristão jamais será a perseguição, e sim
como respondemos à ela. Não estamos do lado “dos vencedores” das guerras de
espada, estamos do lado de Cristo. Nele somos mais que vencedores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
[1] SATTLER, Michael. A Confissão de
Fé de Schleitheim: VI. Nós estamos de acordo como segue sobre a espada.
Literatura Monte Sião do Brasil, São Paulo 2012, p. 9,10 e 11.
[2] Ibid, p. 33.
[3] BENDER, H.S; HORSCH, John.
Mennon Simons: sua vida e escritos. Disponível em http://www.elcristianismoprimitivo.com/,
p 102.
[4] Ibid. p. 104.
[5] Declaração Doutrinária da
Convenção Batista Brasileira (1986), Art, XVI - Ordem Social, pontos 2 e 3.
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